Chuva de questões que vêm atreladas a uma enxurrada de respostas, nem sempre acompanhadas de uma reflexão sistemática, mas que expressam a preocupação de mães, pais e cuidadores.
Estamos vivendo um momento inesperado e fomos todos desafiados. Desafiados a aprender um novo estilo de vida de uma hora para outra sob a ameaça de uma doença que se alastra cada vez mais. Dentre as diversas mudanças adaptativas exigidas por essa nova realidade, a Educação escolar foi uma das mais afetadas, impactando não apenas gestores e professores, que precisaram estruturar novas práticas de ensino e aprendizagem de forma remota, quanto alunos e cuidadores que precisaram se adaptar a essa nova dinâmica. Toda a comunidade escolar, sem exceção, precisou criar mecanismos adaptativos que envolveram desde a garantia de condições técnicas e estruturais para o acesso às aulas, o gerenciamento de uma nova rotina e de novas habilidades, emoções e sentimentos ligados ao contexto de isolamento físico até novas formas de engajamento de todos os envolvidos. Foram mudanças muito repentinas e que se estenderam, e ainda se estendem, por muito tempo trazendo à tona muitas inseguranças e incertezas que nos desafiam diariamente e nos levam a um questionamento constante sobre os caminhos que devemos seguir como educadores. Por isso, faço aqui um convite para refletirmos sobre o assunto a partir de um documento de referência para a Educação Básica lançado recentemente, em 2018: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Vamos lá?
A BNCC é um documento de caráter normativo que foi criado com o intuito de, como o próprio nome diz, ser um referencial comum na organização escolar, definindo as aprendizagens essenciais que devem ocorrer no decorrer da Educação Básica. Sim, a princípio pode parecer algo muito específico e técnico e, como tal, muito distante de nossa alçada como educadores não escolares, contudo, não é bem assim. Primeiramente, porque precisamos reconhecer que a BNCC coloca para a escola grandes desafios, pois exige a reflexão de como arquitetar um ensino baseado em Competências, que é o eixo norteador da BNCC. O que seria, então, um ensino por Competência? No próprio documento encontramos a definição de Competência como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Base Nacional Curricular, Ministério da Educação, 2017). Ou seja, o ensino baseado em competências pressupõe uma formação que envolva as esferas cognitiva, social, emocional centrada no protagonismo dos alunos. Assim, a Educação Básica deve desenvolver nos alunos, considerando cada fase do ensino, dez competências gerais:
Fonte: INEP. Novas Competências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Disponível em: http://inep80anos.inep.gov.br/inep80anos/futuro/novas-competencias-da-base-nacional-comum-curricular-bncc/79 Acesso em: 24 ago 2020.
Quer dizer que os conteúdos das matérias não serão mais ensinados? Não, uma coisa não exclui a outra! Muito pelo contrário. O desenvolvimento de competências depende dos conteúdos e conhecimentos, pois parte da competência, como vimos na definição em que se pauta a Base, é justamente saber mobilizar os conhecimentos e aprendizagens essenciais para a resolução de um problema ou situação. Isso significa que o ensino e a aprendizagem devem ir além da somatória de um conjunto de conteúdos. Ou seja, que precisa ser desenvolvida nos alunos a capacidade de identificar e utilizar esses conhecimentos e habilidades em diversas situações de sua vida e que estarão até mesmo fora dos muros da escola, o que não se faz apenas sobrepondo as orientações da BNCC ao currículo da escola. O desafio da escola é imenso, pois isso pressupõe uma forma de ensino e de aprendizagem que vai do Projeto Pedagógico da Escola, até a sala de aula ou outro lugar em que esse processo aconteça na vida escolar.
E como nós, mães, pais e cuidadores, entramos nessa história? Nós somos parte da Comunidade Escolar e, como tal, devemos compreender que esse desafio não é apenas da escola. Para isso, no entanto, precisamos, também, superar certas formas de entendimento da Educação que de tão arraigadas, andam sozinhas quando ligamos o “modo automático”. Como grande parte de nós foi educada a partir de uma ideia que considerava a educação escolar como fonte de aquisição de Conteúdos, tendemos a exigir da escola o atendimento desses requisitos que acabam sendo considerados não apenas como parâmetro de qualidade, mas também de garantia para um promissor futuro profissional a nossos filhos. Mas, isso corresponde à realidade em que vivemos?
Se pensarmos, por exemplo, apenas no primeiro aspecto de preocupação: o repertório de conteúdos é a única exigência do mercado de trabalho? É o suficiente para garantir o que atualmente conhecemos como empregabilidade, ou seja, a capacidade de não só de se inserir, mas de se manter no mercado de trabalho? Temos visto nos últimos tempos cada vez mais requisitos como a capacidade de trabalhar em grupo, a resiliência e a comunicação sendo exigidas dos profissionais, mas, como e quando eles são aprendidos em nosso processo de formação? São questões fundamentais para repensarmos o que esperamos da formação escolar. Claro que não se trata de subjugar essa formação aos critérios de seleção do mercado de trabalho, mas, pensar no que, não só o trabalho, mas também a vida, tem colocado e pode colocar futuramente, como desafio intelectual e socioemocional a nossos educandos. Para isso, é preciso ampliar o horizonte das expectativas pensando neles não apenas como estudantes, mas como pessoas em formação. Enquanto não virarmos essa chave de expectativas, fica difícil uma real integração entre os novos papeis da escola na sociedade contemporânea e as expectativas de pais e educadores não escolares.
Com isso, retornamos ao convite inicial de refletirmos sobre os modelos de educação escolar tendo em vista nosso atual contexto de pandemia, do ensino remoto imposto por segurança e das exigências colocadas pela BNCC. Apesar das dificuldades que enfrentamos nesse contexto, e que não são poucas, podemos encontrar na janela aberta pela BNCC uma luz para indicar os caminhos de resolução de parte das questões relativas ao encaminhamento do ano letivo. O foco sobre as competências fundamentais estabelecidas por esse documento pode desembaraçar a cortina de conteúdos e vislumbrar o quanto podemos conseguir e, até já conseguimos, atender às expectativas de desenvolvimento de nossos estudantes para a fase correspondente. Ou seja, é possível olhar para trás e para frente com foco menos nos “prejuízos” e mais nas “possibilidades”.
Olhando para trás, podemos reconhecer o desenvolvimento de muitas das competências listadas no contexto de isolamento físico e de ensino remoto. Cultura Digital e Comunicação são as mais óbvias, mas o que dizer sobre as competências de autoconhecimento e autocuidado, de empatia e cooperação ou, ainda de responsabilidade e cidadania? Olhando para frente, podemos dizer que a pandemia, apesar de todo sofrimento e todas as perdas que não podem deixar de ser mencionadas, trouxe a nós, pais e educadores, não apenas a possibilidade de colocar em pauta a Educação Escolar de forma bastante evidente, mas também de nos aproximarmos de forma mais assertiva da escola e das inovações educacionais. Nesse aspecto, que seja uma viagem sem volta!
Tatiana Gomes Martins, mãe de alunos de Colégio Básico, Doutora em Sociologia Brasileira pela Unicamp e Consultora Acadêmica.
Essa matéria expressa unicamente a opinião de sua autora.